
A Primeira Mochilada a Gente Nunca Esquece
La Paz foi o ponto de partida da minha primeira viagem como mochileiro. Até então, eu era aquele turista clássico. Usava agência de viagem, seguia roteiro fechado e me deslocava de ônibus turístico. Nada contra esse estilo, mas algo dentro de mim queria mais liberdade. Mais improviso. E mais intensidade.
Foi em 2004 que decidi sair do formato engessado. Minha primeira experiência fora do roteiro tradicional foi em Jericoacoara (conto aqui neste outro post). Depois disso, comecei a buscar uma forma diferente de explorar o mundo. E foi assim que a mochila entrou na minha vida. A partir dali, tudo mudou.
Como sou metódico e adoro planejar, montei um roteiro completo com um destino dos sonhos no centro: Machu Picchu. E claro, passando por La Paz. Afinal, se é pra começar no mochilão, que seja por um dos lugares mais icônicos da América do Sul.
Roteiro Planejado, Mochila nas Costas
Naquela época, a rota mais aventureira entre os mochileiros brasileiros incluía o famoso Trem da Morte. Eu queria algo diferente. Além disso, tenho uma mania curiosa: evito repetir caminhos. Então, bolei um trajeto circular:
- Chegada em La Paz, Bolívia
- Ida por terra até Cusco e Machu Picchu
- Seguida até Arequipa
- Descida para o deserto do Atacama, no Chile
- Subida de volta pela Bolívia via Salar de Uyuni
- Retorno a La Paz
Convidei alguns amigos. Muitos se empolgaram, mas no fim, apenas o Raul, meu colega de escritório, e o Ranji, que trabalhava em Nova York, toparam a aventura. Nenhum de nós tinha experiência com os destinos. Na verdade, era tudo completamente novo. E, para deixar mais desafiador, em 2004 a internet ainda engatinhava. Nada de vídeos no YouTube ou blogs com roteiros detalhados. Era no telefone (caro!) e e-mails que as informações circulavam.
Chegada em La Paz: Entre o medo e o encanto
Nos encontramos em La Paz. Eu e o Raul saímos do Brasil, enquanto o Ranji veio direto de Nova York. A mistura de emoções era intensa: medo, ansiedade, entusiasmo e uma dose de “será que eu dou conta?”.
O impacto começou ainda no avião, ao sobrevoar a Bolívia. A paisagem era completamente diferente de tudo que eu já tinha visto. A Cordilheira dos Andes surgiu como uma muralha natural imponente. E a altitude? Assustadora.
Pousamos no aeroporto de El Alto, a 4.100 metros. A sensação foi bizarra. O avião parecia flutuar ao invés de aterrissar. Quando saí da aeronave, tudo ficou estranho. Em poucos minutos, comecei a tremer sem parar. Não conseguia nem ficar de pé. Fiquei ali, no corredor do aeroporto, me recuperando por quase meia hora. Foi meu primeiro contato com o mal de altitude e não seria o último.
Primeiros Dias em La Paz: Acostumando com a Altura
Raul estava melhor, então conseguimos pegar um táxi até a cidade de La Paz, que fica a cerca de 3.600 metros. Parece pouco, mas fez toda a diferença. O ar ainda era rarefeito, mas a sensação era menos desagradavel.
Ficamos em um hostel reservado previamente. Lá, experimentamos o famoso chá de coca, tradicional na Bolívia. Confesso que não gostei. Nunca achei que fizesse efeito. Só depois descobri que, na verdade, ajuda na hidratação e adaptação, principalmente se você bebe muita água junto.
No hostel encontramos o Ranji, pela primeira vez pessoalmente. Até então, só tínhamos nos falado por telefone e e-mail. Ele estava sofrendo ainda mais com a altitude. Nova York é praticamente ao nível do mar, então o contraste foi brutal pra ele. Subir um simples lance de escada era uma tortura.
Fomos orientados a não ficar parados. Então, apesar do mal-estar, saímos para comer e dar uma voltinha. Acabamos em um bar bastante exótico, onde serviam bebidas com animais em conserva dentro das garrafas. O Ranji até se interessou por um vidrinho com cobra, mas eu passei longe.
Explorando La Paz com Calma
No dia seguinte, fomos dar uma volta pelo centro de La Paz. Ainda não estávamos 100%, então ficamos em áreas planas. Difícil, porque La Paz é uma cidade em que você sempre está subindo ou descendo. Não tem meio-termo.
Mais um dia passou e finalmente comecei a me sentir bem. Descobri que sou um dos sortudos que se adaptam fácil à altitude. Sinto apenas um pouco de fraqueza nos primeiros dias e depois, sigo tranquilo.
Uma Viagem no Tempo: Tiwanaku
Com o corpo mais adaptado, decidimos fazer um bate-volta até Tiwanaku, um dos principais sítios arqueológicos da Bolívia. Antes, paramos no mirante próximo a El Alto. De lá, La Paz parece um grande vale cinza, árido e cheio de vida ao mesmo tempo. Um cenário que me impactou, vindo de um país tropical, essa secura toda me parecia outro planeta.
Tiwanaku fica a 3.850 metros de altitude, perto do Lago Titicaca. O lugar é impressionante. Trata-se de uma antiga cidade planejada, centro da civilização Tiwanaku, que existiu entre os anos 400 e 900 d.C. A origem exata ainda é debatida, com teorias que vão de 3.000 até 17.000 anos. Dá pra sentir a energia do local.
Entre os destaques estão as cerâmicas decoradas, blocos megalíticos e estruturas cerimoniais. Os incas se consideravam herdeiros dessa civilização, o que só reforça a importância histórica de Tiwanaku na formação da cultura andina.
Chacaltaya
No último dia em La Paz, decidimos encarar um desafio maior: Chacaltaya, a montanha com 5.421 metros de altitude, a apenas 40 km da cidade. Raul ainda não estava bem, então fui com o Ranji.
Subimos de carro até os 5.000 metros, onde ficava uma antiga estação de esqui . Hoje desativada por causa do derretimento das geleiras. A última parte foi a pé, até o cume.
Era a maior altitude que eu já havia atingido. Queria muito chegar ao topo, e consegui. Foi um dos momentos mais marcantes da viagem. De lá se tem uma vista linda do Pico nevado Huayna Potosí (6088 m).
Uma boa parte da turma, não conseguiu e preferiu ficar na estação de esqui apreciando a vista. Voltamos a La Paz, e fomos descansar.
Descansamos mais um dia para nos aclimatar e seguimos a viagem.
De La Paz a Copacabana: Estradas e Emoções
Seguimos viagem rumo a Copacabana. Mas, como a Bolívia estava passando por protestos, as principais estradas estavam bloqueadas. Pegamos caminhos alternativos e perigosos. Alguns trechos eram de puro barro e beiravam barrancos. Foi tenso, mas chegamos.
Copacabana é um charme. Localizada às margens do Lago Titicaca, é famosa pelas festas religiosas e casas de telhado vermelho. A praça central abriga a bela Catedral da Virgem de la Candelaria, símbolo da cidade.
Isla del Sol e Isla de la Luna: Misticismo no Lago Titicaca
Com o céu azul nos convidando, embarcamos para as ilhas. A Isla del Sol é cheia de ruínas incas, templos e lendas. Há três povoados principais: Yumani, Challapampa e Ch’alla, onde é possível se hospedar em casas simples e familiares. Caminhar por lá é como voltar no tempo.
Depois, seguimos para a Isla de la Luna. Dedicada ao feminino, era habitada pelas chamadas “Virgens do Sol”. A atração principal são as ruínas do Palácio de las Vírgenes del Sol. Diz a lenda que apenas o imperador podia pisar ali.
Se quiser pernoitar nas ilhas, vá preparado. O frio é intenso, as acomodações são básicas e a estrutura é limitada. Nós voltamos para dormir em Copacabana.
Isla del Sol
Rumo ao Peru
Depois dessa imersão na Bolívia, atravessamos a fronteira rumo ao Peru, com destino a Puno e ao restante do nosso roteiro. Mas tudo começou em La Paz. A cidade que me apresentou ao mundo do mochilão. Um início intenso, cheio de desafios, mas que plantou a semente de todas as viagens que viriam depois.